quinta-feira, 24 de janeiro de 2013


CONTO DE NATAL - 1º prémio Ensino Secundário
 
Eu vi, vi tudo.

Vi e posso contar-vos, podem crer nestas humildes palavras. Que mais humildes, digo eu, não haverá. Palavra de jumento!

 

Claro que a noite estava fria e o céu negro. Negro e sem esperança. Era mais uma noite. Só mais uma noite, como tantas outras que ali vivi. O estábulo era um estábulo, o estábulo era tão rudimentar como todos os outros estábulos, nem mais, nem menos. Era um estábulo. E nós animais, eu e meia dúzia de néscios animais. Alguma vez nós poderíamos imaginar?

Já era tarde quando a porta grande e tosca rangeu. Entraram aos solavancos, desencantados e eram tão tolos como nós. Ele magro e pequeno; ela, montada num compadre meu, carregava uma barriga imensa… Vinham de rostos tapados, não nos impressionaram. Continuámos a dormitar, indiferentes. Pousaram o pouco que traziam, e destaparam-se. Os rostos, a fazer jus às personagens, eram do mais simplório. Mas todos nós, animais, ficámos então estarrecidos com tamanha tranquilidade, com evidente júbilo que aqueles rostos transpareciam.

Que era aquilo? Principiámos a inquietar-nos, a remexer-nos sem motivo…

Senti-me de repente gélido, arrebitei as orelhas; nada no mundo era mais fascinante que dois campónios intrometidos que conviviam com os animais…

Ela soltou gemidos de dor, ele pediu-lhe calma. Afagou-lhe os cabelos compridos, e pude ver que suavam ambos, naquela noite tão fria. Ele sentou-a numas palhas velhas e sujas, onde nem mesmo nós quisemos pernoitar, e ela cambaleava. Quase posso jurar que aquela barriga se agitava em regozijo, e aqueles dois, ela sentada, ele ajoelhado defronte dela, tão pobres, tão insignificantes, olharam-se num momento, e o mundo cessou por instantes.

Não sou capaz. A minha sabedoria, ou a falta dela, não me permitem pormenorizar a brutal força com que aquele olhar me atingiu. Nada mais puro, nada mais cândido. Ali vi, sem pompa nem aparato, o amor como ele veio ao mundo. Serão as minhas lágrimas secas, de velho burro, capazes de vos exprimir? Meu pobre coração, até então um baldio de amor…

Num instante, a mulher deitou-se para trás. Ele ficou aflito. Ela gemia de frio.

Pouco falavam, e ele gesticulava, nervoso. Os olhos ficaram lívidos quando a olhava, ali, tão inócua e débil. Procurou os nossos olhares por breves segundos; levantei-me, impelido por uma força e uma compreensão fogosas, e como eu, todos os outros, e aproximámo-nos da mulher. Tudo o que podíamos oferecer estava ali. O nosso calor, a nossa simplicidade, os nossos corações, onde agora o amor despontava.

Os primeiros gritos surgiram. Pediu a mão dele, e a voz sumia-se-lhe. Os cabelos colados à testa, as gotas de suor que lhe escorriam. Abria as pernas, agarrava a barriga em desespero. Os olhos projetados, fixados; as contrações invadiam o corpo. Queria esbracejar, contorcia-se em aflição. Desejava golfadas e golfadas de ar, mas tudo o que o corpo lhe proporcionava era dor.

Ele ficou mudo, e grossas gotas escorriam-lhe pela face. Quando os seus olhares se cruzavam, ele sorria desajeitadamente. Que era feito da esperança, da pureza e da beleza de há pouco? Agora tomava lugar o desespero, a repugnância, a dor e o desencanto.

Mas nenhum de nós se alarmava. Só calor. Calor. Calor para a mulher.

E o homem fechava os olhos, clamava por alguém. Queria uma resposta, queria saber o que fazer, queria pôr termo ao sofrimento da mulher.

“Oh Pai, meu Pai glorioso, de que vale todo este sofrimento? Nada pode valer isto por que fazes Maria passar, Pai!”

Mas ninguém lhe respondia. Foram longos minutos, e ela arfava. Contorcia-se, e voltava à rude posição, de coxas abertas ao mundo. Coxas para o mundo. Gritava, com cada vez menos forças. E ele acabou por nos olhar longamente, numa interrogação, e aquietou-se. Agradeceu ao “Pai”, e instantes depois transmitia essa calma súbita, quase teatral, à mulher.

Seguiu-se uma calma imensa, um silêncio profundo na noite, e os olhos da pobre mulher cerraram-se. Tranquila, com um ligeiro esboço de um sorriso nos lábios finos, parecia ir-se.

Ir-se, à mercê da noite.

O homem estava firme, tremia as mãos.

Num ímpeto desconhecido, a mulher abriu os olhos, bramiu aos céus por auxílio, berrou num desespero incontido, e fez tanta força quanta a que uma mulher e um homem podem conter juntos.

Um choro desafinado. Uma jorrada de sangue vivo. Uma réplica disforme, ensanguentada e insignificante daquele homem e daquela mulher.

Insistimos em esquentá-la, em amenizar aquele frio cortante, mas ela era já indiferente. Tomou o ser nos seus braços, limpou-o com as suas vestes, e ficou ali, de peito quente, transbordante, rosa pálido e descaído, a nu. O homem regozijou-se, e cantaram juntos.

Davam glória. Seguravam a criança, tão fraca e misteriosa, e apertavam-na contra si, mais rudes, simplórios e feios que nunca.

Alternavam o bebé, desajeitados, entre os seus braços, erguiam-no no ar. Invariavelmente, faziam agudizar o choro da criança. Mas que choro! Que choro! Oh, cada choro, cada movimento daquele ser era motivo de regozijo.

Tive então certezas de estar diante de três seres humanos dementes.

Levantei-me, com muito esforço, e quis respirar. Saí pelas traseiras, com um certo receio da noite escura e amargosa que se havia posto. Decidido a ser veloz, baixei as orelhas e andei, cabisbaixo uns metros, só abrindo os olhos para ver o percurso, tal era o meu medo.

Mas vislumbrei então um brilho. Um clarão. Uma claridade imensa.

Descerrei as pálpebras a medo. Encostei-me à madeira fria do exterior do estábulo. Quando ergui então a cabeça, todos os céus estavam estrelados, imensos, e se desfaziam em glória e esplendor. Nunca vi eu, tão servil e ignorante criatura, um espetáculo tão cheio e magnificente. Nunca perante meus olhos se estendera tamanho deslumbramento.

E o céu agradecia-me.

O céu entoava sons das maiores alegrias, o céu ria, o céu gargalhava, o céu estava em júbilo.

E uma paz imensa, uma paz vinda das profundezas do mistério, inundou-me e tomou o meu ser.

Eu era um burro, e tinha assistido. Eu sabia. Eu vivi. Eu senti.

E toda a dor vale a pena. A dor dos humildes é a grandeza. E eu, asno perdido no mundo, soube então o que é amar.

  

                                 Mariana Guisado. 11º G

1 comentário:

Anónimo disse...

Muito original, sem dúvida alguma. Revelas uma grande criatividade e sensibilidade. Parabéns! Ana Julião